domingo, março 05, 2006

Este é o logótipo do meu novo projecto, com o João, a Sílvia e o Filipe...

sexta-feira, março 03, 2006

"III – O segundo dia

Em cima do seu planador Alfredo olhava as gradações azuis do horizonte, pensativo. Os aventureiros têm destas coisas, lançar-se de um penhasco sem pensar o que fazer depois de aterrar. Na verdade pouco lhe interessava ver o mundo, em suma pouco lhe interessava viajar em concreto. Era voar que o apaixonava, sentir-se o menos humano possível e esquecer tudo. Absorver o mundo pictoricamente como quem se deixa dominar por uma pintura.

Estrategicamente pouco restava a fazer senão procurar outra montanha e para isso a aeronave, da forma como estava montada, era impossível de se transportar. Não foram poucas as folhas preteridas do seu caderno a ser levadas pelo vento, na tentativa de chegar a uma solução de montagem e desmontagem rápida, uma vez que este problema repetir-se-ia naturalmente.

Já solvidos os mais densos problemas e posto em prática o plano da desmontagem e transformação, de um veículo planador num outro rolante, havia que partir sem demora. Valia-lhe energeticamente os dois ovos postos pela Alice logo cedo pela manhã, ela que estava muito perto da felicidade, por um lado por se ver fora de um galinheiro, por outro por imaginar já sem dificuldade a diversidade alimentar de que supunha poder dispôr nas diferentes paragens. Isso de comer apenas milho é pouco próprio de uma galinha com o poder imaginativo de Alice, cujo interesse pela culinária recolectora ascendia já a duas gerações na sua família. E apesar de não o admitir, encontrava também nesta fase a satisfação de uma frustração antiga, a de não poder, como as rapinas que no passado a cobiçavam, cruzar os céus.

Os caminhos terrestres, é bem sabido, são sempre mais duros que os do céu, que o diga Alfredo empenhado como está em transportar literalmente cada quilograma do seu sonho, até chegar à próxima montanha. As costas lançam queixumes, os músculos rangem e protestam, mas a obstinação é a mais forte das motivações e só a escuridão pode parar, por momentos, quem não tem propriamente destino. A noite desce o pano, as pálpebras pesadas reconhecem a sua autoridade e abrem-se para dentro de outro mundo.



A planície é de tal forma vasta e esmagadora que os cumes lá ao fundo não passam de fracas intenções geológicas, longe de permitir uma descolagem eficiente e muito menos duradoura, ao ponto de não valer o esforço do processo de conversão mecânica encontrado. Ainda estremunhado, Alfredo prepara-se para recomeçar o seu trabalho de carregador de si próprio.

Ainda não se havia posto a caminho e já o verde plano e interminável desvenda aos poucos os luminosos pontos vermelhos das macieiras carregadas de um pomar. O sol translúcido e anguloso esfaqueia o olhar entre cada copa, e mais perto entre cada ramo. Em cima de um pequeno monte um velho casebre, provavelmente do proprietário dos terrenos, traz a Alfredo a lembrança da sua condição humana, e com esta o desejo de trocar algumas palavras, mesmo breves, com alguém, que ainda de compreensão inferior à da velha Alice, as possa também emitir. Largando tudo atrás de si, não disfarçando até um certo entusiasmo, aproximou-se da aprumada construção de madeira e chamou o da casa."